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O Andrógino e o Adorador de Presunto

Publicado: 28 de janeiro de 2014 em Contos, Humorísticos
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Sentado no banco à janela do ônibus, se aproxima a mulher com seu vestido verde e uma sacola de supermercado. Com uma das mãos apoiando-se no ferro ela olha com espanto para ele e suas mãos, suas unhas e seu penteado estranho. Fez menção de se sentar ao seu lado, mas devido a um engasgo e soluço por ter interrompido sua gargalhada, postergou a companhia do rapaz e sentou-se mais ao fundo onde sua visão era categoricamente privilegiada. Acomodou sua sacola no banco ao lado e, desenrolando seu fone de ouvido, escapava o olhar clínico para ele que coçava suas bochechas com unhas maiores que as suas. A mulher ria tímida com as duas mãos sobre os lábios e imaginava, — creio eu, como um homem daqueles satisfaria suas necessidades como mulher. Emprestaria seu esmalte azul calcinha para ir à festa do pijama com a irmã? Experimentaria os vestidos dela para conferir se ficaria delineado no corpo menos volumoso da amada?

Colocando os fones dentro do canal auditivo ela ainda gargalhava silenciosa e internamente ao balançar negando com a cabeça o que seus olhos viam. Era um olhar no movimento das ruas e outro em direção ao homem de unhas longas e lustrosas. O convívio com a criatura foi ficando menos evidente para a moça sorridente. Não se importando tanto agora, ela pega a sacola de compras e coloca sobre suas pernas e desliza suas nádegas para o banco da janela. Escora sua cabeça no encosto e deixa a música que atingia seus tímpanos auxiliarem no descanso mental. Mas nunca deixava de dar aquela esticada no olhar para o rapaz.

O ônibus diminuía de velocidade para outros passageiros entrarem. Dois homens beirando seus trinta anos e uma senhora de bengala cumprimentaram o motorista. Ela nem pensa em passar pela catraca, se senta nos primeiros bancos e tira de sua bolsa um pacote de bolacha Maria, enfiando-as de duas a duas na bocarra com dentes artificiais. O motorista vira-se para ela e reclama dos farelos espirrando pelo chão. A velhota pedia desculpas em tom brando, mas os pedaços de bolacha não queriam parar dentro da boca, formando uma nuvem amarela clara, ela dizia: “Vesculpe, mofo”.  Com ar de indignação o motorista continua o trajeto.

Os outros dois caras tinham passado pela roleta após ter pagado a cobradora. Um se sentou ao lado de uma loira, mais a frente, e o outro ao lado da moça sorridente que nem percebera sua chegada. Assim que o homem resolveu se sentar ao lado dela, a moça havia tirado a sacola do banco para ele se sentar, e apoiou as sacolas em suas pernas, sobre seu vestido, as coxas volumosas estavam aparentes pelo peso das sacolas e o homem reparou na exuberância toda da sua companheira de ônibus. Depois de alguns minutos o homem pergunta se ela gostaria que segurasse suas sacolas. A moça aceita fazendo um ar de alívio. Pegando pelas alças, o homem abre as pernas e coloca as sacolas no meio. Passados pouquíssimos segundos, ele pergunta: “Sinto cheiro de presunto, vem daqui?” a moça balança a cabeça que sim e responde que havia comprado porque estava na promoção. “Sou fascinado por presunto”. O homem fecha rapidamente os olhos e suga pelo nariz o odor dos frios que lhe perturba as emoções. “Posso pegar uma fatia?” A moça sem entender muito bem, acaba cedendo o pedido. O homem então, com um brilho feroz em seus olhos, abre cada sacola para procurar seu objeto de desejo. A respiração, — percebo daqui, do último banco do ônibus —, que o homem suspirava e lambia os lábios cada vez que o odor agradável lhe atingia. Achando o pacote, ele agarra com as duas mãos e ergue para o alto, contemplando-o maravilhado. A moça cada vez mais espantada com o acúmulo de ações do homem, nem ligava mais para o andrógino e suas unhas do outro lado do corredor. Seu foco era o maníaco, o tarado, o degustador, o adorador de presunto que tratava aquelas fatias como filho, como mulher ou como sua profissão: com ferocidade absurdamente amável.

O homem desenrola o pacote e tira a pilha de presuntos, sacode de um lado para o outro fazendo espirrar um pouco de líquido na saia da moça. Ela nem percebe. Estava focada nos atos de um homem perturbado por presuntos.

A dentada foi precisa, calculada. A marca perfeitamente circular dos dentes no restante do apresuntado obrigou a moça a não levá-lo mais para casa, deu de presente ao homem maluco. Nessa altura do trajeto, o andrógino já percebera a movimentação do adorador de presunto e resolveu chamá-lo. “Ei, cara. Me arranja um pedaço?” Com as bochechas estufadas o homem para a mastigação, olha com fúria para o andrógino e, tirando uma fatia, lança-o pelos ares que cai na mão afeminada do andrógino. Ele enrola o presunto como um canudo e enfia goela adentro. Outras pessoas entravam e saíam do ônibus, rápidas e compromissadas com horários, afoitas e desligadas, tanto, que nem prestavam atenção nos comedores de presunto.

O local de desembarque da moça chegou. Ela pediu permissão para o homem que limpava a boca e acabara de soltar um arroto com bafo de presunto. O homem cede a passagem e ela desce pela porta traseira levando suas sacolas, seus momentos de pasma loucura, suas angústias, suas interpretações de que o mundo só existe, se existir esse seres diferentes dela. A porta se fecha e não vejo mais a moça.

— Venha se sentar aqui, cara. — o andrógino chama o adorador de presunto. Ele vai. Os dois se olham, se idolatram e começam a conversar coisas que não presto a mínima atenção. Minha descida era na próxima parada. Vejo o adorador de presunto passar a mão nos cabelos do andrógino, e ele ria com a mão na boca que quase nem aparecia por causa de suas unhas longas.

Me levanto do banco e espero o ônibus parar diante da porta que se abria. Na rua, sentia o ar fresco das árvores. Tiro um cigarro do bolso e começo a pensar na moça que levava suas sacolas de supermercado. Sei onde ela desceu agora pouco. Ao invés de seguir para minha casa, entro na primeira padaria que ainda está aberta e compro um quilo de presunto magro, pago e coloco na sacola. Vou atrás da moça, a esmo, sem rumo. Minha única certeza é que ela precisará desse presunto e eu precisarei dela como gratidão.